há sempre o vazio no decurso dos dias há sempre o silêncio que a escuta acrescenta há sempre a partilha da tristeza ou alegria
ou simplesmente de tão perene melancolia nos dias em que prolifera a nostalgia que a voz o silêncio atormenta
por vezes a intuição do sagrado presente por vezes uma prece precisa e directa por vezes o que existe para além deste aquém somente e tão só será meta
na impetração da luz consistente razão que ao coração acarreta criação designada por gente urge não permanecer indiferente à constância do diálogo em linha recta
Esse dilúvio a cair dos céus e eu com a minha inaptidão de perceber o delírio dos deuses. Oh Satã! Traz-nos um bocado do calor do Hades! Fartei-me desse maldito frio, no entanto, é bom que adestro a minha indolência. Louvo os tempos de luxúria onde a minha vida libertina não permitia que repetisse um homem sequer. E havia muitos que queriam o meu corpo. Só meu corpo, e eu o deles. Tudo muito consensual e equitativo. Que noites eram!... A minha conduta lasciva era aprovada pelo meu juízo desnorteado. Desde sempre soube que tenho uma vida mais dada ao ‘flirt’ do que ao amor. Que fique explícito que não sou o primeiro a dizer isto e muito menos que sou o autor disto. São histórias de uma Lisboa que já foi. Histórias de uma senhora muito gira e aleijada. Coitada! Que deus a tenha!... Porque ela engatava os camionistas, e muito educadamente, solicitava ao homem a permissão de lhe fazer um broche. Assim reza a lenda. Eu não vi, mas dava tudo para vê-la trabalhar no truca-truca das muletas. -Ai que língua demoníaca eu tenho! -Isola! Isola! Isola! Então eu, a noiva depravada e virgem, cheio de iluminações disparatadas, aguardava pelo filho do sol que me viesse possuir. Nem eu me conheço! Ai! Ai! Ai! Este texto mal escrito e desvairado é apenas uma ordinária herança que deixo registado. Ainda há-de vir mais. Assim espero, se deus me conceder força nesse meu corpo selvagem. Fico com os meus frémitos vagabundos, na sombra do tempo, na rima sem cor, torturado na mudez imemorial e no infortúnio idiota, aniquilando as minhas memórias incomuns. São apenas palavras que conflitam.
Ai as minhas sinestesias! Adoro-as! Para mim, apreciador dos cheiros das músicas e dos sabores das cores, o A é branco, o E amarelo, o I azul, o O vermelho e o U preto, que as vezes me confunde com um verde muito escuro. Loucura minha. Para as pessoas, dou-lhes cores também: o meu anjo tem a cor azul céu como os seus olhos e pele macia como o veludo. É pena que poucas pessoas tenham essa cor, porque estão todas muito estragadas. Vivo nessa frenética alucinação e nessas desvairadas associações da minha mente tarada. Quão bom! Ainda menino, costumava imaginar que o meu quintal era um grande reino, e cada árvore era uma casa, num sistema aberto, baseado no livre acesso. Entretanto estavam todos muito maduros para aquele disparate todo, tão maduros que apodreceram. Eu que sempre participei da concepção do meu imaginário, fui sempre o culpado. Não interessa. -Eram tolos e não sabiam o que diziam! -Salve Deus! E então eu criava caminhos retirando as ervas daninhas e chamava-lhes de avenidas, depois, as casas nas alturas das árvores em pontos estratégicos para avistar os inimigos. Ali passava horas a fantasiar e inventar, onde era habitual ao fim da tarde e do desvario todo, ir conversar com as plantas e sentir o cheiro das flores. Queria não ter chegado ao fim da eternidade, mas cheguei. Já adulto retornei à esse lugar, e na minha casa, que era uma goiabeira muito velha, fui até o meu quarto, que tinha uma vista para todo o reino, e acendi um cigarro, e o fumei. Dentro de mim, havia um lamento de ter crescido, em ver como já não havia tanto espaço para mim ali, como as árvores tinham crescido, e como já não tinha a mesma mobilidade. O reino manteve-se. Eu não. De longe ouvia chamarem o meu nome, mas naquela altura, não era apto de decifrar qualquer sinal sonoro incapaz de me fazer retornar ao infeliz mundo real. Dia trágico. Início do meu luto.
Um brinde ao meu desvario que agravou, porque tenho empregado dias a preparar a música para o meu funeral. Quem me dera a mim, burrico de ideias, que alguém me tirasse a traça da minhas roupas. Ai que coisa mais grosseira! Preciso de ficar com bom aspecto, porque, espero em deus que ainda hei-de encontrar um vadio qualquer, num beco qualquer, que lhe dê uns tostões para que me moleste, que me puna e que me ofenda! Ai que conversa tão porca e tão excitante!... Já anestesiaram-me, de maneira que não sinto mais a dor dos golpes dos punhais. Poderia até pensar em correr, entretanto, arracaram-me as pernas. E não sei quem fui. Escuta o meu choro profano e bebe do meu veneno, e deixa que os deuses assitam-nos perecer em glória. E o meu vampiro? Aquele que têm-me sussurrado palavras magníficas ao meu ouvido, onde está? Desejava agora que ele me pudesse cuspir a boca e encher-me com a sua saliva! Mas antes, ele há de vir com um grande helianto nas mãos, para tirar essa coisa que trespassa a minha garganta, porque não quero ser empedido de ser possuído apenas por tê-la em sangue. E fazer tudo sem olhar para trás. Rindo, tremendo e ardendo.
Então eu vi, com as pálpebras molhadas, grandes constelações que faziam pausar o tempo entre a imensidão das estrelas e a infinidade do universo.
Nessa altura, já tinha eu me prostrado diante do pó e visto que por mais forte que fosse, nada poderia fazer diante daquele mar de espelhos que me ofuscava a visão. Lá no fundo, eu sabia que em certo momento havia de ter evitado a coisa toda, todavia, mantive-me na minha incapacidade de querer ser bem mais do que eu posso ter.
Sobrava-me então a pintura de céus noturnos, onde a minha visão débil conseguia apenas oscilar entre a Ursa Maior e milhões astros.
E então tirava do bolso o livro que faltava a página do fim, na esperança de encontrar uma solução sensata.
Estive por meses a foleá-lo inutilmente.
Era apenas uma repetição qualquer.
Exausto e cego, percebi onde estava e quem esteve comigo desde o princípio da coisa toda, e me constrangi ao ver quão grande era o sentimento e quão alto ele estava. Mais lágrimas me vieram, e porfim caiu-me a venda dos olhos.
E então, recordações azuis e aromáticas ao meu agrado me pairavam sobre a cabeça. Tudo muito íntimo e muito intenso.
E naquele filme em câmera lenta, com o sol a aquecer-me o corpo, apalpei a areia húmida da chuva e parei o tempo.
E aquele momento era só meu.
Às vezes se eu me distraio Se eu não me vigio um instante Me transporto pra perto de você Já vi que não posso ficar tão solta Me vem logo aquele cheiro Que passa de você pra mim Num fluxo perfeito Enquanto você conversa e me beija Ao mesmo tempo eu vejo As suas cores no seu olho tão de perto Me balanço devagar, como quando você me embala O ritmo rola fácil, parece que foi ensaiado
E eu acho que eu gosto mesmo de você Bem do jeito que você é
Eu vou equalizar você Numa freqüência que só a gente sabe Eu te transformei nessa canção Pra poder te gravar em mim
Adoro essa sua cara de sono E o timbre da sua voz Que fica me dizendo coisas tão malucas E que quase me mata de rir Quando tenta me convencer Que eu só fiquei aqui Porque nós dois somos iguais Até parece que você já tinha O meu manual de instruções Porque você decifra os meus sonhos Porque você sabe o que eu gosto E porque quando você me abraça o mundo gira devagar
E o tempo é só meu e ninguém registra a cena De repente vira um filme todo em câmera lenta E eu acho que eu gosto mesmo de você Bem do jeito que você é
Eu vou equalizar você Numa freqüência que só a gente sabe Eu te transformei nessa canção Pra poder te gravar em mim
Bosques, encheis de susto como as catedrais, Como os órgãos rugis; e em corações malditos, Quartos de terno luto e choros ancestrais, Todos sentem ecoar vossos fúnebres gritos. Eu te odeio, oceano! e com os teus tumultos, Já que és igual a mim! Pois este riso amargo Do homem a soluçar, todo sombras e insultos, Eu o escuto no riso enorme do mar largo. Como serias bela, ó noite sem estrelas, Que os astros falam sempre claro em sua luz! Busco o infinito negro e os precipícios nus! Porém as trevas são elas próprias as telas, Em que surgem, a vir de meu olho, aos milhares, Seres vindos do além de rostos familiares.
Chegado dos Alísios, O Guardião dos Fogos espalhava as estrelas do Nascente, e a sua mão de olhares cruzados acendeu os Céus num momento inteiro, do supremo Zénite aos infinitos lugares do Poente.
Era o Turbilhão dos Astros e das flores efemeras, e o turbilhão das estrelas fixas, desenhado para sempre, ato inscrito no Tempo
Palavras inefáveis e versos mudos ecoavam pelo horizonte cor de púrpura.
Ali, com o tempo invertido, o grácil mancebo imerso nas suas improbabilidades, sentia a correr pelas suas mãos o rio límpido como cristal.
E naquela valsa das águas vivas, sentado numa rocha inerte, tendo o seu coração desconcertado, com o crepúsculo preso na dimensão do infinito, mergulhado em outros tempos, fitava seus grandes olhos castanhos no mover das correntezas.
Os raios de sol, que, ao se refletirem no manto líquido, transformavam o translúcido Rio de Ondas num grande espelhos de sonhos distantes. Parecia que, por uma fração de segundos, a cidadezinha cor de barro, aquela do fim da Bahia, desfazia-se na insipidez do próprio nome.
Barreiras.
No êxtase do verão, com a ingenuidade mor sobre si, em meio àquela natureza primitiva, viu qualquer coisa a girar sobre si mesma, parecendo querer emergir, de modo que, com o relógio parado, esticou os braços onde os dedos compridos e finos experimentaram pela primeira vez a rústica textura daquele coração em pedra.
Mal ele sabia que ofereceria a prenda mais valiosa, qual agora era possuidor, àquele qual ansiou encontrar. Remetia-lhe à memória suas tardes eternas, onde, sentado sob a sombra de goiabeiras secas pelo calor nordestino, rabiscava numa folha de papel, sua lista de desejos.
Dois anos vão-se desde que o rapaz cheio de frémitos e o seu encontraram-se.
E a pedra, foi um brinde de fim de tarde, com um escrito simples, demasiado verdadeiro para ser repetido.